domingo, 12 de dezembro de 2010

O Curioso Caso de Bruci Uilis

 - “Bruci Uilis, cadê você !
 - Se eu te pegar garoto... Quem mandou você rasgar a lona pra fazer pandorga?!
 - Vai acabar ficando igual seu pai, que faz o salário virar cana!
- Êta menininho ignorante... Pensa que pipa dá futuro pra alguém? Vai logo pra rodoviária vender picolé! E se você chupar algum nós nos acertamos na volta ! Tá tudo contadinho...”

Dona Dilce era uma das pessoas de maior credibilidade na periferia de Vanderwalls.
Ia à Igreja todas as Sextas-feiras, Sábados e Domingos; ajudava a comunidade dos 'meninos bundudinhos do tchan', distribuía sopão e dava conselho às mocinhas sobre os perigos da puberdade e beleza (que lhe faltara a vida inteira).
Porém, em que pese toda sua 'bondade', tinha o costume de menosprezar a própria família perante a vizinhança.

Seu filho mais novo, o único sobrevivente da desnutrição e espancamento - Bruci Uilis – era um “mau” menino: quase não falava, quase não corria, quase não sonhava. Gostava de jogar bulita e soltar pipa. Não estudava e podia, já aos sete anos de idade, ser considerado o arrimo da família, com a venda de picolés e DVD’s piratas na zona da cidade, situada na Rodoviária, ao lado do hemocentro.

Fazer milagre com santo alheio é fácil. Dona Dilce tinha formação superior neste assunto. Mas quando a noite caía em Vanderwalls, algo acontecia... A zona que testemunhara o labor de seu pequeno filho durante o dia era o seu reinado à noite. Intitulada “boca doce”, fazia a alegria da rapaziada e dos caminhoneiros. Nem cobrava pelos serviços prestados – na maioria das vezes até pagava, utilizando-se do dinheiro arrecadado em prol dos pobres. Certa vez, um de seus ‘clientes’ foi reconhecido como sendo um dos membros de sua igreja – esse santo ela conhecia bem... O segredo ficou entre os dois.

Uma coisa, porém, era preocupante: o menino estava diminuindo a cada dia. Isto acontecia desde que relatara ter visto o incrível ‘Marcusluscus’ – o caracol-maravilhoso-reinador.

Cada dia mais miúdo, Bruci Uilis já media 63 centímetros, até que, semana após semana, sumiu...


Mais uma vez, a suspeita recaia sobre a personalidade "Dona Gertrudes"; porém, ela negou qualquer feitiço contra o menino, imputando todos aqueles fatos ao maravilhoso caracol encantado.


Reza a lenda que, provavelmente, Bruci Uilis estaria servindo a Marcusluscus, sob sua carapaça. Quanto ao ser encantado, não há maiores detalhes por enquanto. Sobre todos que o vêem repousa a maldição do encolhimento, esquecimento e desaparecimento. O que se sabe é que aquele ser habita nas matas de Vanderwalls - nas suas profundezas proibidas.


O interessante de tudo é que ninguém dali se propôs a tomar qualquer atitude em prol do garoto.
É impressionante como aquela comunidade era conivente com a lenda e a superstição - ainda mais quando envolvesse a desgraça alheia.


Pouco tempo depois, além de atribuírem alguns milagres e feitos a Bruci Uilis - desde a cura de animais a supostas aparições de sua pequena silhueta em vidros e paredes - deram seu nome, como homenagem póstuma, a uma pequena rua situada em uma região de classe média de Vanderwalls, infestada de maconheiros.


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domingo, 31 de outubro de 2010

O Natal da turma de Zé Tóbinha

“Natal, feliz natal... natal... natal..."

Jorge, Zé Tóbinha e Quinca sonhavam com um natal diferente. Queriam champanhe, panetone e principalmente carne de porco. Jacó passou a perna neles, vendendo-lhes um porquinho doente.

-       Pai, muito obrigado pelo esforço – disse o filho de Zé Tóbinha.

Mataram o pequeno suíno e nem sequer limparam-no por dentro. Era a pressa e a euforia indo adiante da higiene. Assaram o bichinho só um pouco – gostavam de carne mal passada – e fizeram a alegria de 32 pessoas. 

Foi uma grande festa na favela.


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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

I - Todos optaram pelo silêncio



Todos optaram pelo silêncio. A cidade fez um pacto – pela própria sobrevivência.

Quem conhecera Vanderwalls há 50 anos poderia dizer que a cidade pouco evoluiu.
Seus habitantes, de uma ignorância sombria, não costumavam ser hospitaleiros.
A pequena cidade, situada em algum dos vales do País, era pouco conhecida – nem nos mapas aparecia.

Não havia escola; não havia delegacia, estrada, nem hospital.
A educação das crianças era responsabilidade dos pais – e a cidade fazia questão de orgulhar-se de possuir o maior índice de analfabetismo do mundo: 98%.

-          - Filadapúta! (gritou Seo Tobias)

Era o Cristopheer Rivis, mais uma vez.
Garoto esperto, levado e bandido, invadiu a casa do velho, usou o vaso sanitário e não deu descarga…

O garoto era mesmo danado. Mas ninguém podia dizer que não fosse trabalhador. Vendia picolé todo dia e se orgulhava de poder comprar  os próprios cigarros, em que pese a menoridade.

De repente, o velho, irritado com a atitude de ‘desaforo’ do menino, correu na cozinha, pegou uma chaleira de água quente que estava em cima do fogão de barro e, com uma rapidez incomum para sua idade, jogou no rosto do garoto.

(silêncio)

O menino não chorou. Apenas olhou o velho nos olhos.

Por mais que estivesse convencido da justiça que aplicara, Seo Tobias sabia o que significava o silêncio daquele, justamente daquele rapaz.
Caramba!

O menino apenas virou as costas, pegou seu carrinho de picolé e, de posse de uma faca e um ursinho de pelúcia (???), acendeu um cigarro e seguiu em direção ao casebre onde morava, com o rosto desfigurado.

Dona Gertrudes observou tudo – morava  nos fundos da casa de Seo Tobias. Tinha o maior terreiro de macumba da região e era considerada, nada mais nada menos, que a maior macumbeira que já existiu ali. Tinha mais de 300 imagens de santo (fazia coleção), conhecendo, segundo ela, os poderes e feitiços de cada um. Quase não dizia nada – ficava calada o tempo todo. Inspirava um misto de medo e respeito. Sua casa, cheia de plantas, parecia uma floresta. Por onde ela passava, se visse flor, erva ou pé-de-fruta, parava pra colher uma “muda”.
Usava ‘minâncora’ no subaco e sempre estava com vestimentas de renda branca (daquelas que parecem uma toalha de mesa).

-          -   “Isso que oce fez com ele, Tubias, num tem perdão, nem nessa vida, nem na otra.”

Na lógica deles, a justiça não seguia um liame racional. Para alguns populares, a attitude dele foi mais do que correta; para outros, o menino tinha que se vingar (e estavam dispostos, inclusive, a ajudar). Dona Gertrudes podia tranquilamente ser enquadrada neste ultimo grupo.

O velho engoliu em seco. Tomou aquilo como uma ameaça e, mais que depressa tentou justificar-se, dizendo que o menino tinha cagado no banheiro dele e não deu desgarga.

Enquanto falava, um pequeno ser saltou dentre a vegetação – um homúnculo, de mais ou menos 30cm, veio rapidamente na direção de Seo Tobias  e, dando um assobio, pulou e arranhou profundamente o seu rosto, sumindo em seguida, atrás de uma bananeira.

Seo Tobias entrou em desespero, correu pra dentro de casa, pegou uma garrafa de pinga e passou a bebida no ferimento - muito perto do olho direito.

Ele não sabia o que estava acontecendo, nem que ‘bixo’ era aquele que o atacou. Sentia muita dor, quando, com medo, trancou a porta e manteve-se em silêncio.

Enquanto  isso, Cristopheer voltava ao local. Começou a atirar pedras na casa de Seo Tobias, gritando palavrões e chamando-o para fora. Aparentemente, não havia ninguém na casa.  Já cansado, o garoto defecou em uma caixa de sapatos e embrulhou carinhosamente em embalagem de presente, deixando na porta da residência. Terminada a ofensa, voltou pra casa, pois já estava anoitecendo.

Caiu a noite em Vanderwalls.
As noites lá eram mais longas que o dia. Uns diziam que era efeito da sombra das montanhas, que bloqueavam boa parte do sol nascente e poente; outros diziam que era por causa da maldade e malícia ali presentes. A ciência nunca dissera nada a respeito, mas algumas pesquisas comprovaram que uma noite lá durava cerca de 17 horas.


No dia seguinte, após ter passado a noite toda sentido dores no ferimento causado pelo ser desconhecido, Seo Tobias, ao abrir sua porta, deparou-se com duas coisas: um lindo presente deixado por alguém, e uma macumba, obviamente deixada por Dona Gertrudes.
Com raiva, deu um chute na oferenda, esparramando farofa pra todo lado. Pegou o presente e, ansiosamente, rasgou a embalagem… tinha merda dentro.

Aquilo era muita falta de respeito.
Enquanto resmungava, Dona Gertrudes apareceu e, com um pequeno sorriso, perguntou-lhe sobre seu olho. Ele não entendeu. Ela então perguntou-lhe se tinha gostado do presente, referindo-se à oferenda; contudo, ele pensou que se tratava da merda.
Sob este raciocínio, Seo Tobias maquinou o mal contra Dona Gertrudes, mas não sabia como faze-lo.

Conhecedora dos pensamentos, a velha pediu a ele um copo d’água. 

-       É minha oportunidade – pensou ele.

Adentrou na casa e, pegando um copo na cozinha, encheu-o com água da privada, dizendo: “com merda se faz, com merda se paga”!

-       Tome Dona Gertrudes, a água que a Senhora me pediu.

Ela pegou o copo de suas mãos e observando que a água apresentava cor e cheiro, mesmo assim a tomou, constatando que também tinha sabor.

De repente, começou a comer o copo de vidro, como se fosse uma maçã, e seus olhos se tornaram brancos.

Seo Tobias neste momento se arrependeu profundamente. Rezou São Cipriano, três Ave Maria e uma Salve-Rainha.

Ela voltou ao normal.

Daquele dia em diante, Seo Tobias começou a perder tudo na vida. No mesmo dia, perdeu o emprego no jogo do bicho; em dois dias furtaram tudo o que ele tinha dentro de casa. A ferida no rosto piorava, e ele já não dormia por causa da dor. No terceiro dia, sua casa pegou fogo devido a um curto-circuito; a ferida fedia e coçava, por causa dos bichos que surgiram dentro. Ele já não conseguia enxergar mais com o olho direito.

Desesperado, concluiu que isto tinha a ver com as ofensas que fez à Dona Gertrudes e foi pedir-lhe clemência.

Todo o esforço foi em vão. Ela não lhe respondeu nenhuma palavra.

Sem casa, abandonado, doente e amaldiçoado por uma macumbeira, sentou-se à beira do rio que cruzava a cidade, esperando pelo pior. Ele conhecia a fama de Dona Gertrudes. Ela nunca falhou. Hoje ela era pobre, mas chegou a fazer fortuna no passado pelos seus trabalhos espirituais.

No quarto dia, os moradores da cidade, dentre eles Dona Gertrudes e Cristôpheer, com o rosto deformado, velavam Seo Tobias em um terreno baldio da cidade – enterrado do lado de cachorros e gatos, sem direito a sequer um caixão.

Todos da cidade sabiam tanto os fatos quanto os motivos da morte daquele que já fora o “Rei do Jogo do Bicho” de Vanderwalls.
Todos sabiam, mas ninguém  o ajudou.

A única honra que o coitado teve foi ter uma vela-de-sete-dias verde acessa sobre seu ‘túmulo’ – uma homenagem de Dona Gertrudes.

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